segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Para Lígia

Oi (meu amor) Lígia.

Sei que talvez esta carta só tenha chegado até você muito tempo depois da minha partida, mas não foi minha culpa, por favor, antes de pensar que não me importo com você e com (Guilherme e ...) nossos filhos, me deixe explicar tudo o que aconteceu.
Naquela tarde de domingo todas as mercearias estavam fechadas e eu precisava mesmo comprar cigarros (você sabe como eu fico alterado quando acabam meus cigarros), então peguei um ônibus para ir até o mercado mais próximo. Acontece que, no meio da viagem, peguei no sono e só acordei no ponto final. Pra não dar viagem perdida, fui, mesmo assim, comprar os cigarros. Comprei. Fumei. Fiquei mais tranquilo. Mas toda essa tranqüilidade foi pro espaço quando percebi que o dinheiro que me restava não era suficiente pra passagem do ônibus de volta.
Enquanto não encontrava uma solução fui caminhando pelo centro da cidade, veio a noite, o frio, a fome e, pra completar a desgraça, acabaram-me os cigarros. Minha sorte foi ter conseguido fazer amizade com alguns moradores de rua, eles me ofereceram um papelão pra poder esticar o corpo. Enquanto o sono não vinha conversamos sobre muitas coisas. Descobri que moradores de rua não foram sempre moradores de rua. Um deles tinha feito faculdade e tudo mais. Nos tornamos amigos de verdade.
No outro dia conseguimos comer graças (ao peso na consciência) à boa vontade dos transeuntes que passavam por ali. Dei um jeito na fome e no frio, mas ainda não tinha o dinheiro da passagem, e muito menos cigarros. Bem, o cigarro não foi problema por muito tempo, meus amigos novos me ofereceram uma novidade, digamos assim. O único problema dessa novidade é que afeta a memória, mas como faz passar a fome e alivia a ansiedade, resolvi aderir.
Depois de algumas semanas acompanhando meus novos amigos, comecei a me acostumar com algumas coisas como falta de grana, bens e, principalmente, o cheiro deles (que agora era o meu também).
Numa tarde dessas estávamos na beira de uma estrada que já tentei lembrar o nome pra escrever nessa carta, mas não lembrei, um caminhão se aproximou numa velocidade nada comum para os caminhoneiros daquela região. O caminhão estava quebrado. Segundo o dono do caminhão era alguma coisa no motor.
Pra sorte dele Cássio, um dos nossos, era dono de uma oficina e resolveu o problema, pra nossa sorte, o caminhoneiro tinha bom coração. Ele nos ofereceu uma carona até o litoral. Aceitamos sem pensar duas vezes.
(Querida) Lígia, pra encurtar a história...
Não pretendo voltar pra casa.
Esta carta só chegou pra você agora (oito meses depois da minha partida) porque resolvi escrevê-la somente agora...
Sou outro homem agora, Lígia. Quando respiro fundo posso sentir a liberdade percorrendo cada poro da minha pele, sinto que sou dono dos meus passos. Aprendi a fazer alguns artesanatos, e, pra minha surpresa, eles fazem o maior sucesso aqui no litoral. Não dá pra comprar muita coisa, mas tenho vivido bem fazendo isso.
Espero que a raiva que você está sentido agora não te impeça de ser a ótima mãe que eu sei que você é.

O que eu queria naquela tarde de domingo não era conseguir cigarros, eu queria ser livre.


Queria muito assinar essa carta, mas de tanto me chamarem de Joca acabei esquecendo meu nome.


JOCA

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